Este artigo propõe uma análise crítica da chamada quarta ferida narcísica da humanidade, provocada pela ascensão da inteligência artificial (IA), especialmente em sua vertente generativa.
Na era digital, surgem indícios de uma possível quarta ferida narcísica: a constatação de que a inteligência, por muito tempo considerada atributo exclusivamente humano, pode ser simulada — e em alguns casos superada — por sistemas artificiais. A inteligência artificial não apenas realiza tarefas cognitivas com elevada eficiência, mas também desafia noções fundamentais de consciência, criatividade e identidade.
Partindo das três feridas descritas por Sigmund Freud, cosmológica, biológica e psicológica, autores contemporâneos como Dora Kaufman, Lucia Santaella, Jorge Forbes, Laurent Alexandre e Yuval Noah Harari sugerem que a IA representa uma nova ruptura na percepção de centralidade e superioridade do ser humano.
A discussão aborda os impactos ontológicos, epistemológicos e éticos da IA, com ênfase nas transformações da subjetividade, da educação e da democracia.
Introdução
A ideia de “ferida narcísica” é apresentada por Freud em seu texto “Uma dificuldade da psicanálise” (1917), no qual argumenta que o homem, historicamente, precisou lidar com sucessivos rebaixamentos de seu status privilegiado no cosmos.
A história da humanidade é marcada por sucessivas desconstruções do narcisismo antropocêntrico. Sigmund Freud, em seus escritos psicanalíticos, identificou três grandes feridas narcísicas: a cosmológica, com Copérnico, que deslocou a Terra do centro do universo; a biológica, com Darwin, que negou a exclusividade humana na criação; e a psicológica, com o próprio Freud, ao revelar o inconsciente como instância determinante da ação humana.
No século XXI, estudiosos propõem uma quarta ferida narcísica: a tecnológica, provocada pela inteligência artificial, que desafia a singularidade da cognição e da criatividade humanas.
Segundo as autoras, Lucia Santaella e Dora Kaufman (2024), defendem que a IA generativa inaugura uma nova ferida narcísica ao rivalizar com a capacidade humana de produzir sentido. A IA não apenas automatiza tarefas, mas cria conteúdos originais, textos, imagens, músicas, a partir de grandes bases de dados, desestabilizando a noção de autoria e originalidade.
Já o psicanalista e escritor Jorge Forbes (2011), propõe que vivemos uma era pós-narcísica, marcada pela lógica do inconsciente e pela complexidade das relações humanas diante da tecnologia. A subjetividade contemporânea é atravessada por uma nova forma de angústia: a de não saber mais o que é exclusivamente humano.
A emergência da IA, especialmente com os avanços recentes em aprendizado de máquina e modelos de linguagem (como os LLMs), levanta questionamentos profundos sobre o que define o humano.
Como observa Harari (2018), algoritmos capazes de tomar decisões, produzir textos, criar imagens e interagir socialmente representam um deslocamento do monopólio humano sobre a razão e a linguagem. Tal cenário suscita a hipótese de uma quarta ferida narcísica, que atinge diretamente a ideia de que a inteligência, enquanto expressão máxima da subjetividade, é um atributo unicamente humano.
Na compreensão de Laurent (2020), o autor analisa como a subjetividade é reconfigurada na era digital. Segundo o autor, a IA não apenas imita, mas aprende, interpreta e cria, gerando um novo tipo de espelho para o humano.
A quarta ferida narcísica, nesse contexto, não é apenas simbólica, mas ontológica: ela redefine o que significa ser humano.
A IA não “pensa” no sentido humano, mas simula processos cognitivos com impressionante eficácia. Como ressalta Searle (1980), no famoso experimento da “sala chinesa”, entender símbolos não é o mesmo que compreendê-los, ainda assim, a IA opera com tal fluidez que produz no interlocutor a sensação de entendimento.
Essa simulação gera um efeito de espelhamento, no qual o sujeito humano se vê confrontado com sua própria inteligência mimetizada, criando desconforto ontológico (BREAZEALE, 2016) e colocando em questão o que significa ser consciente, criativo ou original.
Na contemporaneidade, a subjetividade é atravessada por fluxos digitais, plataformas automatizadas e sistemas de recomendação. Os algoritmos moldam comportamentos, preferências e identidades, muitas vezes sem que o sujeito tenha consciência de tal mediação (HAN, 2021).
Autores como Katherine Hayles (1999) e Donna Haraway (1991) já antecipavam o surgimento de um sujeito pós-humano, híbrido, cibernético. No contexto atual, essa figura ganha contornos mais nítidos. O humano já não é mais apenas um organismo biológico, mas uma entidade interconectada com dispositivos técnicos que influenciam sua cognição, desejo e memória.
A IA também provoca uma nova forma de ansiedade narcísica: a insegurança quanto à própria relevância diante de máquinas que executam com mais precisão tarefas antes consideradas humanas. Essa ansiedade é intensificada por discursos tecnofóbicos ou tecnosolutionistas, que ora demonizam, ora endeusam a IA, sem espaço para reflexão crítica equilibrada.
A Guerra das Inteligências: Laurent Alexandre
Em A guerra das inteligências na era do ChatGPT (2024), Laurent Alexandre alerta que a IA generativa representa uma virada histórica sem precedentes. Segundo ele, “jamais uma tecnologia havia se imposto tão rapidamente”.
O autor destaca que o ChatGPT e seus similares aceleram uma corrida global por superinteligência, com implicações profundas para a educação, o trabalho e a democracia.
Alexandre afirma que a IA impõe uma “metamorfose da escola”, pois os métodos tradicionais de ensino tornam-se obsoletos diante da capacidade dos algoritmos de fornecer respostas, resolver problemas e até ensinar. Ele prevê que “os netos de nossos filhos não irão mais à escola como conhecemos hoje”.
Além disso, o autor denuncia a falta de preparo dos líderes políticos e educacionais para lidar com essa revolução. Ele chama atenção para o risco de uma “algoritmocracia”, em que decisões são tomadas por sistemas automatizados, sem transparência ou controle humano efetivo.
A Ameaça Existencial: Yuval Noah Harari
Yuval Noah Harari, historiador e autor de Sapiens e Nexus, também contribui para essa discussão ao afirmar que a IA representa uma ameaça existencial à humanidade.
Em diversas entrevistas e em artigos recentes, Harari alerta que “a IA não é uma ferramenta, é um agente” capaz de tomar decisões, moldar culturas e influenciar a história.
Segundo Harari, a IA supera todas as tecnologias anteriores porque pode agir de forma autônoma, sem supervisão humana. Ele compara a revolução da IA à Revolução Industrial, destacando que, embora tenha gerado prosperidade, também provocou guerras, colonialismo e desigualdade. A IA, sem regulação adequada, pode repetir esse padrão em escala global.
Harari defende que a humanidade precisa aprender a usar essa tecnologia com sabedoria, sob risco de perder o controle sobre os rumos da civilização. A quarta ferida narcísica, nesse sentido, não é apenas uma crise de identidade, mas uma encruzilhada histórica.
Exemplos Contemporâneos
- ChatGPT: produz imagens, vídeos, voz e texto, são sistemas capazes de redigir artigos, poemas, roteiros, filmes e até teses acadêmicas, gerando inquietações sobre autoria, o que é verdade ou fake News, questões que envolvem propriedade intelectual e criatividade.
- Midjourney e DALL·E: plataformas que criam imagens a partir de comandos textuais, desafiando artistas visuais e designers.
- Deepfake e manipulação de identidade: tecnologias que simulam rostos, vozes e comportamentos humanos, levantando questões éticas sobre autenticidade.
- IA em diagnósticos médicos: algoritmos que superam médicos humanos em precisão diagnóstica, gerando debates sobre confiança, controle de dados sensíveis e responsabilidade.
Considerações Finais
A inteligência artificial, ao desafiar a exclusividade humana sobre a razão e a linguagem, pode ser compreendida como uma quarta ferida narcísica, uma nova descentralização do sujeito no palco do conhecimento.
Diante disso, faz-se necessário promover uma educação crítica que permita compreender a IA não como ameaça ou milagre, mas como ferramenta que deve ser pensada a partir de sua inserção em contextos éticos, políticos e culturais.
A quarta ferida narcísica representa um ponto de inflexão na história da humanidade. Ao confrontar o humano com sua não exclusividade na criação e no pensamento, a IA generativa inaugura uma nova era de desafios ontológicos e epistemológicos.
Mais do que resistir ao desconforto provocado por essa ferida, é preciso integrá-lo como parte de um novo paradigma de subjetividade: um sujeito que se reconhece atravessado por tecnologias, mas que ainda é capaz de refletir sobre elas.
Cabe à sociedade refletir sobre os limites e possibilidades dessa tecnologia, sem perder de vista a complexidade da subjetividade humana e a necessidade de regulação ética e democrática.
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Referências
ALEXANDRE, Laurent. A guerra das inteligências na era do ChatGPT. São Paulo: Manole, 2024. ISBN: 978-8520460474.
ALEXANDRE, Laurent. Subjetividade e tecnologia: o humano em transformação. Paris: Éditions du Seuil, 2020.
BREAZEALE, D. Designing Sociable Robots. MIT Press, 2016.
FORBES, Jorge. O homem do século XXI: do sujeito ao singular. São Paulo: Editora BestSeller, 2011.
FREUD, S. Uma dificuldade da psicanálise. In: Obras Completas, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1917.
HAN, B. C. Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Vozes, 2021.
HARARI, Y. N. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
HARARI, Yuval Noah. Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
HARAWAY, D. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D. Manifesto Ciborgue e outros ensaios. São Paulo: Editora Ubu, 1991.
HAYLES, N. K. How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. University of Chicago Press, 1999.
KAUFMAN, Dora; SANTAELLA, Lucia. A inteligência artificial generativa como quarta ferida narcísica do humano. MATRIZes, v. 18, n. 1, p. 37–53, 2024. Disponível em: https://revistas.usp.br/matrizes/article/download/210834/204211. Acesso em: 13 out. 2025.
SEARLE, J. R. Minds, Brains, and Programs. Behavioral and Brain Sciences, v. 3, n. 3, p. 417–457, 1980.
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Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029
Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.
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