A CURA PELA PALAVRA E SUA IMPORTÂNCIA NA PSICANÁLISE – TALKING CURE

A palavra “psicanálise” tornou-se polissêmica; passou a designar não so­mente um método terapêutico, mas também uma ciência – nos diz Freud –, afirmando, assim, o lugar social, político e científico da psicanálise ao se abrir sua interlocução com outras disciplinas. A psicanálise passa a desvendar as ló­gicas que organizam os costumes, a posição do sujeito, rasgando as camadas do discurso estrito da disciplina, navegando por mares de outros campos do saber (literatura e as artes em geral, geografia, antropologia, história).

O discurso analítico é, portanto, o desejo de Freud, uma aposta de ter lan­çado questões, de ter aberto caminhos a partir da descoberta do inconsciente. Na práxis analítica marcada pelo desejar – verbo aberto à invenção, não marca­da por um imperativo superegóico –, vê-se a possibilidade de indagação acerca do que interroga o psicanalista no caso clínico e na cultura, questionando as teorias aprendidas e produzindo saberes que possibilitam ampliar a reflexão sobre as guerras, os fenômenos de massa, os mitos, as instituições e as cidades.

Escutar é, de longe, um ato passivo. É uma atividade particular na qual a escuta promove a fala do outro; é um convite à fala do outro sem reservas. A arte de escutar é rítmica, desenvolvendo-se como uma arte respiratória (HAN, 2019).

A cidade é humana por excelência. Nela estão presentes o desamparo e o desejo, os corpos, as moradias, as faltas de moradia, o transporte, o asfalto, enfim, as vidas que não se restringem às necessidades básicas e à proteção. A cidade atrita: o público e o privado, o particular e o universal, o sagrado e o profano, o dentro e o fora entremeiam-se. Podemos pensá-la com suas plasti­cidades, fraturas, ritmos, porosidades e fissuras, com sua organização e desor­ganização pela ação cotidiana de sujeitos e de instituições concretas, como a família, a escola, o trabalho.

Na cidade experimentamos o encontro/desencontro com o outro. A ci­dade é convívio, é compartilhamento do espaço público, mas pode não ser. Porque as cidades existem em tensão. Essa tensão possibilita construir laços, por outro lado, impede relações e vínculos entre os sujeitos. As cidades se formam a partir de sedimentos históricos e sociais que conformam as sociedades e ditam, em cada época, as formas dos relacionamen­tos humanos.

As cidades brasileiras contemporâneas trazem as marcas identitárias da casa-grande/senzala do Brasil colonial de Gilberto Freire, perfazendo uma terri­torialidade fechada, segregadora e excludente. A matriz das cidades brasileiras é a casa-grande do Brasil colonial e da escravidão. Às vezes é difícil reconhecer essas marcas. Às vezes essas marcas estão mais ou menos explícitas, mas estão presentes.

Jessé de Souza (2017) argumenta que a visão do brasileiro como vira-lata, pré-moderno, emotivo e corrupto decorre de uma leitura liberal, conservadora e equivocada do passado. Para o autor, faz-se necessário reinterpretar a história do Brasil tomando a escravidão como o elemento estrutural que marca a socie­dade brasileira.

O passado que nos domina não é a continuidade com o Portugal pré­-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornariam impossível uma sociedade minimamente igualitária como a eu­ropeia (SOUZA, 2017).

Pensar essas camadas pelas quais são formadas as cidades brasileiras, que aparentemente são profundas e submersas, mas na verdade se revelam em superfície, talvez possa auxiliar e iluminar a escuta psicanalítica nos territó­rios marcados pelas situações sociais críticas, uma vez que é possível observar como a reverberação desses restos está presente nos atendimentos nos serviços de medidas socioeducativas, no sistema penitenciário, nas praças, no atendi­mento às mulheres vítimas de violência, nas clínicas do testemunho, nos despe­jos e remoções de grupos e pessoas nos espaços públicos.

Por isso a psicanálise não é compatível com os sistemas totalitários de poder. Sempre que esses se instalam, é necessária a inventividade do analista para a colocação em ato do discurso analítico a fim de resgatar a polissemia das palavras, os atravessamentos inconscientes, os ad­ventos do real.

Nessa perspectiva, manter o pensamento clínico e a capacidade crítica de refletir sobre as práticas psicanalíticas do consultório aos mais diversos con­textos sociais é fundamental, é o que nos faz contemporâneos. Como refere Agamben (2009):

“Pode-se dizer contemporâneo aquele que mantém fixo o olhar no seu tem­po, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Pode dizer-se contem­porâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade.

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo”. (AGAMBEN, 2009, p. 41).

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BROIDE, E.E.; BROIDE, J. A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clí­nica e intervenções. São Paulo: Escuta, 2015.

DANTO, E.A. As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social. São Paulo: Perspectiva, 2019.

DIDI-HUBERMAN, G. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Belo Horizonte: Ed C/Arte, 2009.

FREUD, S. (1937) Construcciones en el análisis. In: ______. Obras completas: vol. XXIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1976a.

______. (1925[1924]) Presentación autobiográfica. In: ______. Obras completas: vol. XX. Buenos Aires: Amorrortu, 1976b.

GAY, P. Uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HAN, B-C. La expulsión de lo distinto. Buenos Aires: Herder, 2019.

SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029

Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.

Licenciada pelo E-psi do Conselho Federal de Psicologia para atendimentos on-line.

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