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AMOR OU IDOLATRIA AOS BEBÊS REBORN

Por muitos anos, os donos de bonecas reborn se tornaram objeto de histórias de interesse humano na cobertura jornalística como um hobby ou colecionismo.

As manchetes atuais na mídia tendem a produzir notícias que buscam chocar ou promover histórias que visam o trágico, mas o aspecto mais fascinante desse fenômeno é quanto os adultos preferem a companhia de bonecas. O que é único hoje em dia é como esse relacionamento entre humano e boneca se desenvolve, dado o apoio da percepção imaginativa, materiais avançados e comunidades online.

O termo “relacionamentos sintéticos” descreve como alguns adultos mantem interações pessoais significativas com um companheiro boneco/boneca substituto. O companheiro é sintético, mas as emoções que emergem das interações são reais, especificamente com bonecas reborn e bonecas sexuais. É importante destacar que as bonecas reborn não são usadas de forma sexual.

As bonecas sexuais existem há mais de um século, mas realmente cresceram em popularidade desde a virada do século XXI. O estabelecimento de fabricantes que usam silicone macio e armaduras internas fortes para criar bonecas realistas de tamanho adulto levou a uma maior conscientização cultural sobre bonecas sexuais e a uma apreciação de seu uso como um companheiro sintético que vai além do sexo.

Algumas pesquisas recentes apontam que ao contrário das narrativas populares e da mídia, esse tipo de brincadeira de um adulto com uma boneca reborn não surge necessariamente em resposta a traumas relacionados à fertilidade, o que é uma explicação comum para a compra de um bebê reborn. O fato da boneca reborn ser divertida parece ser obscurecido pela apreensão e preocupação direcionada a qualquer adulto que tenha uma boneca assim, possa estar com algum problema patológico.

Numa perspectiva mais objetiva, a imagem de uma mulher que tem tempo para brincar com o que alguns percebem como um bebê falso incita suspeitas por causa da noção arcaica de que a maternidade é uma obrigação séria que deve ser assumida às custas da diversão pessoal e de todos os outros interesses. A brincadeira com a boneca reborn está diretamente associada ao conceito de maternidade, mas, na prática, a brincadeira de boneca prova ser muito diferente.

Segundo as pesquisas a experiência de um adulto brincar com as bonecas reborns fornece um exemplo das complexidades do autocuidado na vida contemporânea e como pode ser desafiador para os outros examinar crítica e publicamente esse tipo de jogo. No geral, essas preocupações oferecem uma descrição precisa do mal-estar geral do capitalismo nas últimas décadas.

O capitalismo tem sido associado a diversos impactos na saúde mental e no comportamento humano. Estudos indicam que a ênfase na competição e na produtividade pode levar ao isolamento social, à solidão e à diminuição do bem-estar psicológico. Além disso, a necessidade constante de desempenho e sucesso pode gerar ansiedade, estresse e até depressão.

Sigmund Freud já discutia o mal-estar social causado pelo capitalismo, relacionando-o à repressão das pulsões humanas e ao conflito entre o instinto de vida e o instinto de morte. Ele argumentava que a civilização exige renúncias que podem resultar em sofrimento psíquico, pois os indivíduos precisam suprimir desejos instintivos para se adequar às normas sociais.

Outro ponto relevante é a conexão entre capitalismo e desigualdade social, que pode intensificar sentimento de frustração e injustiça, afetando a saúde mental de grupos marginalizados. A estrutura econômica também influencia a percepção da realidade e a produção de conhecimento, tornando difícil isolar seus efeitos sobre o bem-estar psicológico.

Portanto, um adulto se divertir levianamente brincando de maternidade com uma bebê reborn diante de tais dificuldades pode ser visto como um ato radical, patológico ou frívolo.

O ato de brincar com o bebê reborn num relacionamento sintético oferece uma sensação de conforto, senso de identidade pessoal e companheirismo.

Emilie St-Hilaire descreve como os relacionamentos sintéticos ou com bonecas são terapêuticos para tratamentos psicológicos com crianças (ludoterapia), ou para adultos como em casos de solidão, ansiedade, depressão, luto, deficiência cognitiva, doenças degenerativas como Alzheimer dentro outras. Estas experiências positivas e curativas já são consolidadas há muitos anos. A autora considera a brincadeira com bonecas adultas como uma intervenção terapêutica, examinando como as propriedades físicas das bonecas renascidas e também das bonecas sexuais proporcionam conforto e satisfazem as necessidades por meio do cuidado. Ela discute o fato de as bonecas proporcionarem um senso de identidade pessoal por meio da brincadeira narrativa, da comunidade e da terapia de compras, e descreve o companheirismo alcançado por meio da percepção imaginativa e das conexões sociais, todos benefícios que acompanham o que ela chama de relacionamento sintético. Ela propõe que a posse de bonecas pode apoiar terapeuticamente o desenvolvimento pessoal e a boa saúde social e mental, melhorando assim os relacionamentos sociais mais amplos para muitos donos de bonecas.

Bonecas reborn custam centenas, às vezes milhares de dólares. Essas bonecas parecem bebês de verdade, seja visualmente ou por meio do toque ou de diálogos convincentes, as maneiras impressionantes pelas quais entidades semelhantes a humanos imitam os seres vivos nos vendem a fantasia de que eles são como nós. Seus corpos são pesados para ter o peso delicado de uma criança. Elas se encaixam em fraldas e roupas de bebê, o que aumenta o tato e até o cheiro que lembra bebês pequenos. Feita de vinil macio ou silicone, essa boneca deve ser cuidada para evitar danos. Limpar e dar banho na boneca tornam-se atos de cuidado que oferecem ao dono da boneca um senso de propósito e até devoção à boneca.

Comparadas as bonecas sexuais de silicone de tamanho adulto também requerem manutenção e cuidados. O corpo pesado não deve ser deixado em certas posições por muito tempo ou ficará deformado. Poeira, sujeira e maquiagem devem ser removidas para preservar a superfície da pele. As perucas também requerem manutenção regular. Esses requisitos de cuidado podem estabelecer um vínculo entre os donos de bonecas e o cuidado de suas bonecas.

Alguns colecionadores de bonecas reborn desejam essas bonecas menores, assim como bonecas reborn com características físicas indicativas de síndrome de Down ou outras condições que requerem cuidados adicionais como por exemplo, bebês reborns prematuros. Além do que é necessário para manter as características físicas do objeto, alguns donos de bonecas estendem seus cuidados para incluir necessidades médicas imaginárias. Está relação com bonecas em situações especiais, aludem sensações em seu dono de ser alguém sensível. Exige preocupações e cuidados intensivos, visto estabelecer uma relação de maior dependência entre o dono e o bebê reborn prematuro ou com alguma deficiência pela própria condição de vulnerabilidade.

Michele White é uma das poucas estudiosas que publicou pesquisas sobre bonecas reborn. Em seu artigo “Babies Who Touch You”, ela descreve como alguns artistas apresentam bonecas reborn prematuras e micro prematuras como mais reais e mais adoráveis por causa de sua aparência frágil.

A análise de White, se concentra em como os artistas de bonecas que vendem seus trabalhos no eBay usam uma linguagem específica para transmitir as sensações de tocar fisicamente e sentir emocionalmente os bebês renascidos colocados à venda. Ela descreve como bonecas retratadas em ambientes hospitalares e envoltas em tubos médicos produzem uma reação visceral, exigindo cuidados delicados e constantes.

A autora destaca que o cuidar de bonecas reborns pode oferecer uma sensação de controle, compaixão, sensibilidade, preocupação e conforto. Além disso, o cuidado é algo que pode ser oferecido, como uma forma de doação de serviço afetivo.

Uma oferta de cuidado normalmente daria direito a algum tipo de retorno, uma vez que a maioria das culturas obedece a uma regra de reciprocidade em relação à doação afetiva.

Phillippe Chanial é um sociólogo francês, ele escreveu sobre as “semelhanças familiares” do dom e do cuidado. Ele propõe que o cuidado, como doação afetiva é claramente uma relação social total e forma uma matriz para as relações humanas.

Chanial observa que, em última análise, podemos nem saber dentro de um relacionamento quem é o doador e quem é o receptor dos cuidados. Mas o ambiente em que o atendimento é oferecido é importante para a qualidade do atendimento. O atendimento de alta qualidade é um recurso limitado devido ao esforço que exige.

Oferecer cuidados de alta qualidade normalmente é essencial para a felicidade do doador, porque oferecer atenção abaixo da média prejudica a autopercepção e o bem-estar de um cuidador. O cuidado, então, é “um empreendimento coletivo.  Essa resposta ao cuidado afetivo pode ser gratidão, apreço ou amor de quem o recebeu. Mesmo quando o trabalho de cuidado envolve compensação financeira, ele merece uma resposta do destinatário.

Em outros contextos, o cuidado pode ser motivado por compensação financeira e, em alguns casos, por pena. No caso da piedade, parece haver menos probabilidade de compensação ou recompensa pelo cuidado, o que causa uma disparidade e prejudica a troca entre o receptor e o doador.

Chanial acredita que existe uma fronteira porosa entre o cuidado e o afeto, dado o critério de reciprocidade. Mas isso traz à tona a questão da reciprocidade do relacionamento. Uma forma de dominação pode surgir aqui porque “o afeto pode conferir poder na medida em que o outro está em dívida”, e Chanial se pergunta se o mesmo não pode ser dito do cuidado. O cuidado não recíproco, ou o cuidado não solicitado em excesso, é uma forma de dominação?

Embora, o cuidado possa se tornar mais simétrico e mútuo, ele também pode ser sublimado em graça. Tais momentos de graça são comuns na experiência do cuidado, momentos em que se trata de dar por dar sem ter como objetivo satisfazer imediatamente uma necessidade afetiva devidamente identificada.

Essa dimensão, de brincadeira, prazer e até desejo, é claramente parte do cuidado. O que é um estado de graça senão um momento fugaz em que a interação humana escapa do peso da rotina, da função e da utilidade, um momento não procurado e inesperado em que as regras e restrições sociais são temporariamente suspensas, onde o tempo para brevemente para uma ação espontânea, uma instância de graça, um afeto concedido gratuitamente ou um belo gesto, uma atenção delicada, uma cumplicidade fugaz revelada em uma palavra, um sorriso, uma risada, um toque corporal. Observamos que as críticas, julgamentos, indignação, ódio e desconforto social são devidas ao contexto que é recriado entre um adulto fazendo uma maternagem numa relação sintética com um bebê reborn.

Aceitar que um toque de graça está no cerne do cuidado humano significa reconhecer esse aspecto necessariamente não utilitário, não qualificável, imprevisível, inesperado, não procurado e imensurável do que é dado como um extra. Sendo inestimável em ambos os sentidos do termo, esse suporte para a vida, incessantemente tece e retece, como se por si só, os elos sensíveis e invisíveis que simbolizam nossa interdependência comum e nossa vulnerabilidade afetiva humana compartilhada.

Essa passagem estendida parece pronta para explicar a alegria de cuidar de bonecas. Graça é um belo termo para descrever o afeto “concedido gratuitamente” do cuidado, particularmente da perspectiva do doador. Porém, cuidar de bonecas é na verdade uma atividade solitária.

A solidão e a aparente unilateralidade do cuidado com a boneca pervertem a conexão com a “interdependência e vulnerabilidade compartilhada”? Segundo Chanial, não, porque o cuidado não é apenas benéfico para o receptor. Faz sentido que o dono de uma boneca se beneficie da percepção imaginativa e dos movimentos performativos do trabalho de cuidado e investimento afetivo.

O autor evita classificar os relacionamentos sintéticos como patológicos ou tristes porque conferem alegria, conforto e graça ao dono da boneca. É difícil em uma sociedade contemporânea e individualista buscar oportunidades de interdependência graciosa e vulnerabilidade compartilhada.

Os desafios da cultura capitalista materialista e muitas vezes perversa, as expectativas de independência e a desvalorização da vulnerabilidade (percebida como fraqueza) dificultam o cuidado, o amor e os relacionamentos. Essas facetas da vida moderna são desafiadoras.

O fato de algumas pessoas resolverem escapar do “peso da rotina, função e utilidade” por meio de relacionamentos sintéticos é uma perspectiva esperançosa e até utópica na contemporaneidade. No caso de um companheiro sintético, nenhuma expectativa de mais doações surgirá como poderia com um parceiro orgânico. Mesmo que o parceiro seja uma figura humana inanimada, ele pode oferecer um retorno sobre o investimento emocional.

Como Chanial descreveu, a prestação de cuidados, por si só, proporciona um retorno de felicidade e o sentimento de graça acima mencionado. Pode ser tão simples quanto ter algo para dar. Em uma sociedade capitalista onde nada é gratuito, o cuidado se aproxima e pode ser bom apenas por esse motivo. Além disso, aqueles que precisam de ajuda em sua vida às vezes podem sentir que são um fardo para os outros.

Dar cuidado ou carinho, no entanto, é algo que pode ser oferecido mesmo que se tenha pouco mais a oferecer. Ninguém quer sentir que não tem nada para dar.

Para indivíduos que vivem com deficiência que requer assistência, cuidar de uma boneca pode satisfazer o desejo de cuidar enquanto se beneficia do conforto físico de tocar, manusear e acariciar o corpo de uma boneca.

Prestar cuidados é necessário, e isso constitui um importante papel social que pode posteriormente contribuir para a identidade de um dono de boneca como cuidador e apoiar um senso de identidade.

O desempenho do cuidado é responsável por grande parte da reciprocidade em uma relação sintética. É a fisicalidade da boneca que estimula o comportamento de cuidado, que inicia o vínculo e os estados afetivos positivos.

O desempenho do cuidado é significativo porque difere de simplesmente sonhar acordado ou outras atividades mentais mais passivas. Ao embalar fisicamente, balançar, abraçar a boneca, escovar seus cabelos ou trocar de roupa, o corpo do dono realiza ações familiares que fazem referência e relembram experiências do mundo real. Essas ações podem transmitir experiência e são uma forma de conhecimento. E tais performances também podem ser pensadas como a transmissão da identidade cultural.

A forma como alguém age contribui para quem ele é. No caso de um relacionamento sintético, os atos de cuidado produzem uma identidade de cuidador. Há uma intimidade no cuidado com a boneca que pode produzir uma proximidade difícil de encontrar nas relações sociais com outros seres humanos.

Da sensação de ser observado à compulsão de tornar públicos os momentos privados, o capitalismo neoliberal está tão absorvido no pessoal que a intimidade confiável e recíproca se torna nublada.

Particularmente na era da conexão digital é raro encontrar momentos de verdadeira intimidade. Experimentar emoções reais dentro de um relacionamento sintético não é um fenômeno novo, mas apenas uma nova forma de compreender o contexto das relações humanas na atualidade.

Se você ou alguém que conhece precisa de suporte, a psicóloga Marina da Silveira Rodrigues Almeida está disponível para atendimentos de psicoterapia online em plataforma de Telessaúde segura e criptografada. O primeiro passo para a recuperação é buscar ajuda especializada.

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Fontes:

Emilie St-Hilaire. O Poder Terapêutico das Relações Sintéticas com Bonecas. American Journal of Play, 2024, 16 (2-3), pp. 288-302.  https://theses.hal.science/ITRA2023/hal-04792229v1

Michele White, “Babies Who Touch You: Reborn Dolls, Artists, and the Emotive Display of Bodies on eBay,” in Political Emotions, edited by Janet Staiger, Ann Cvetkovich, and Ann Reynolds (2010).

Philippe Chanial, “The Gift and Care: Reuniting a Political Family?” Revue du MAUSS. Disponível em: https://journaldumauss.net/

Marina da Silveira Rodrigues Almeida – CRP 06/41029

Psicóloga Clínica, Escolar e Neuropsicóloga, Especialista em pessoas adultas Autistas (TEA), TDAH, Neurotípicos e Neurodiversos.

Psicanalista Psicodinâmica e Terapeuta Cognitiva Comportamental

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